Em Até o Fim um navegador experiente (Robert Redford) está viajando pelo Oceano Pacífico, quando uma colisão com um contâiner leva à destruição parcial do veleiro. Ele consegue remendar o casco, mas terá a difícil tarefa de resistir às tormentas e aos tubarões para sobreviver, além de contar apenas com mapas e com as correntes marítimas para chegar ao seu destino.

Crítica – Omelete.uol.com.br

Em escalas bem distintas, os dois longas escritos e dirigidos por J.C. ChandorMargin Call – O Dia Antes do Fim (2011) e Até o Fim (All Is Lost), tratam de civilização. Tanto naquela história sobre a crise financeira de 2008 quanto neste filme de naufrágio com Robert Redford, o que entendemos por civilização, com suas regras e seus limites, é colocado em dúvida num momento de colapso. Não deve ser muito diferente no drama criminal A Most Violent Year, o próximo filme de Chandor, ambientado em 1981, estatisticamente um dos mais violentos anos da história de Nova York.

Até o Fim começa seu “desafio à civilização” já na primeira cena, centenas de quilômetros adentro do Oceano Índico, quando o veleiro de um senhor de idade (Redford) acerta um contêiner à deriva. O rádio do velejador é danificado, e o drama central de boa parte do filme passa a ser não necessariamente de sobrevivência mas de comunicação: como avisar o mundo de que há algo errado na ordem natural das coisas?

“Ordem natural” e “civilização” são dois conceitos que se confundem quando o homem trata como direito de nascença tudo aquilo que está ao seu redor. É como se a civilização fosse um dado hereditário, e não algo a ser conquistado. O cinema moral de Chandor nos coloca em tramas de crise para nos lembrar disso, da responsabilidade que temos com o mundo de renovar os contratos sociais que firmamos dia após dia. E civilização depende de comunicação, de comunhão.

Um símbolo de comunhão que atravessa o filme inteiro é o anel – desde o anel ornamentado que Redford tem no dedo anular esquerdo (seria uma aliança? A Virginia Jean que dá nome ao barco seria esposa, filha?) até o anel brilhante que encerra Até o Fim. Não estamos diante de um filme de naufrágio como As Aventuras de Pi ouNáufrago, em que a alteridade (Pi/Richard Parker, Tom Hanks/Wilson) continua sendo a moeda da civilização, para ajudar o homem a se impor ante a natureza. Aqui, o homem solitário (divorciado? Ex-alcoólatra?) vivido por Redford paga justamente o preço por abrir mão da alteridade. “Desculpem, eu ferrei com tudo”, ele reconhece na narração que abre o filme.

É curioso que Até o Fim não faça menção a espirituosidades – Redford não fala sozinho, não chama por Deus, o que já seria em si um tipo de comunhão – e ainda assim a jornada do protagonista tenha um inevitável gosto de autoflagelo. Há quanto tempo ele já estava no mar? Que tipo de arrependimento faz uma pessoa escolher a solidão das comidas em lata?

Independente da resposta, o que presenciamos é a redenção de um homem que primeiro entende a civilização enquanto decreto – toda solução no seu veleiro tem um nome previamente atribuído, escrito em letras pretas: “faca”, “bote inflável”, “âncora” -, que se agarra a essa certeza com teimosia (barbear-se na tempestade) e que depois de “perder tudo menos o corpo e a alma”, como ele diz no início, depois de testemunhar a verdadeira ordem natural (a coreografia do cardume, a cena da pescaria), entende enfim a diferença entre pensar-se civil e fazer-se civil. Nem que para isso precise voltar aos primórdios da vida em comunhão, como um neanderthal que descobre o fogo.

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