Atenção! O texto abaixo possui spoilers de “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis”
Depois do fenômeno que foi “Vingadores: Ultimato” em 2019, a Marvel tiraria uma espécie de férias, com um ano de 2020 relativamente mais calmo em relação a estreias, antes de começar sua nova fase com filmes e séries todos partes de um mesmo universo. Acaba que as férias se tornaram um ano sabático forçado, e 2020 se tornou o primeiro ano sem lançamentos Marvel Studios desde 2009.
O ano seguinte viria a compensar, com as estreias das primeiras séries do estúdio. “WandaVision” se tornou um fenômeno à sua própria maneira, oferecendo um novo capítulo a cada semana, e sendo em sua grande maioria diferente de tudo que já havíamos visto do estúdio. Talvez o público finalmente pudesse ficar empolgado com o retorno do tão querido MCU, em um formato novo e empolgante. No entanto, as séries seguintes demonstraram que a Marvel ainda está achando o caminho no mundo da TV, com “Falcão e o Soldado Invernal” e “Loki” sendo mais instáveis.
Mas tudo bem, pois “Viúva Negra” finalmente chegaria às telonas. A produção já vinha atrasada não só por conta da pandemia, mas por ser vítima de um grupo de executivos que não quiseram dar um capítulo próprio para a veterana dos Vingadores Natasha Romanoff ainda na Fase 1, ou ao menos na Fase 2. A personagem teria sua “homenagem” depois de morta apenas, e a magia de uma estreia Marvel nas telonas seria atrapalhada pelo lançamento simultâneo no Premier Access do Disney Plus (e assim, disponível também no seu servidor pirata favorito).
Ao fim de julho, depois de quatro produções sendo assistidas na TV, ansiava-se por algo que realmente nos fizesse lembrar da sensação que é assistir um filme Marvel. Que oferecesse ao menos uma parcela da emoção que era sentar na poltrona e ouvir a abertura composta por Michael Giacchino vinda das caixas de som (uma abertura que agora está presente em quase todos os episódios das séries, e parece ir perdendo cada vez mais o impacto). Em um período incerto sobre os lançamentos em meio à pandemia, eis que foi decidido: “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” seria uma estreia exclusiva dos cinemas. Com a vacinação em bom progresso, grande parte do público já se sentiria confortável para ir a uma sala de cinema, e assim conhecer seu novo herói favorito da Marvel.
Todos sempre torcem para o “azarão”
Anunciado durante o glorioso painel da Marvel da San Diego Comic-Con 2019, “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” traria o primeiro protagonista asiático do estúdio, com a promessa de revitalizar a história com elementos problemáticos do herói nos quadrinhos. Simu Liu subiu ao palco apenas quatro dias depois de ter recebido a ligação com a confirmação de que seria Shang-Chi, e logo viralizou seu clássico tweet jogando para o universo o desejo de fazer parte do MCU.
O ator só tinha a série “Kim’s Convenience” como maior destaque na carreira, e logo sua vida mudaria completamente. A questão é, Liu ganhou o coração dos fãs de imediato. Bem ativo nas redes sociais, ele falava — e continua falando — diretamente com o público, reconhecendo memes e trends atuais, e servindo como um fã do MCU que de repente foi colocado dentro do universo. Similar ao que aconteceu quando Tom Holland foi escalado como o novo Homem-Aranha, já estávamos prontos para amá-lo mesmo antes de ver seu filme.
E então quando a pandemia começou, “Shang-Chi” teve sua data de estreia adiada três vezes, com as próprias filmagens tendo de ser paralisadas e adaptadas. Com a Disney decidindo o que adiar e o que colocar no streaming, e toda a discussão envolta nisso, o equivocado atual CEO Bob Chapek classificou “Shang-Chi” como um “experimento”, dizendo que a obra seria um teste para guiar futuras decisões de lançamentos da Disney. Em suma, o longa seria obrigado a dar bons resultados. A declaração, embora faça sentido dentro do contexto mercadológico, mostrou-se insensível ao talento envolto na produção – o que já se tornou marca registrada do novo Bob -, e Simu Liu usou seu Twitter para expressar que o filme não seria um “experimento”, mas “a surpresa”.
O ator @SimuLiu rebateu o comentário de Bob Chapek, CEO da Disney, em relação ao lançamento de #ShangChi:
“Não somos um experimento. Somos os azarões, os subestimados. Somos a celebração da cultura e da alegria que irá perseverar após um ano difícil. Nós somos a surpresa”. pic.twitter.com/LlOhSYhB52
— Cinema com Rapadura (@rapadura) August 14, 2021
E assim o foi. Depois de seu segundo final de semana, o longa já acumula US$ 257 milhões de bilheteria mundial, tendo um ótimo desempenho. Os números são um sucesso não só pelo contexto da pandemia, mas porque muitos duvidaram que “Shang-Chi” teria alguma relevância. Um herói pouco conhecido dos quadrinhos, que não havia tido nenhuma relevância no MCU até então, com o elemento mais conhecido de seu lore sendo o Mandarim, usado como uma piada em “Homem de Ferro 3”.
Depois de “Vingadores: Ultimato”, como a Marvel esperava que “Shang-Chi” tivesse importância o suficiente para “salvar os cinemas”? Bom, a resposta é até simples. “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” é uma viagem de volta à Fase 1 da Marvel, com os deslumbres e diversão de uma época em que o mais importante era a aventura do filme em questão, e nem tanto como a obra atual impactaria a seguinte. Claro que em seu início o MCU nem ao menos tinha a garantia de que conseguiria se firmar, e cada passo era pequeno, devagar e sempre. Mas à época, tudo era novo e animador.
É fácil lembrar de “Homem de Ferro” como o ícone que é até hoje, mas até mesmo sua sequência, não tão apreciada hoje em dia, era divertida o suficiente para nos empolgar. Tony Stark estava de volta, com seus preciosos Happy Hogan e Pepper Potts, e elementos da Iniciativa Vingadores vinham à tona sem prejudicar a narrativa da produção em si. Natasha Romanoff era apresentada, o amado Agente Coulson ganhava mais espaço, e apesar do fraco vilão (elemento herdado de seu primeiro filme, por sinal), “Homem de Ferro 2” triunfava.
Depois dos elogiados “Thor: Ragnarok” e “Capitão América: O Soldado Invernal”, é difícil lembrar a empolgação que seus capítulos iniciais trouxeram. A Fase 1 se encontra distante e nem tão deslumbrante depois de outras duas fases abaladoras. Mas devemos nos lembrar que o próprio MCU começou como um azarão. Por conta de seu passado conturbado, poucos acreditavam que Robert Downey Jr. era uma boa escolha para encabeçar um projeto tão importante. E não se enganem, o Homem de Ferro não tinha nem um terço da relevância que ganhou após seu intérprete o tornar tão imprescindível a ponto de seu próprio universo cinematográfico se tornar dependente dele. Em uma época que sucedia a primeira trilogia dos X-Men e os filmes do Homem-Aranha de Sam Raimi, e no mesmo ano de “O Cavaleiro das Trevas”, “Homem de Ferro” era o azarão. E todos sempre torcem para o azarão.
Personagens sempre foram a maior a força do MCU
Depois que “Os Vingadores” fez do MCU o auge do gênero de super-heróis na cultura pop, a Marvel sempre tinha que ir mais e mais além, e alguns erros foram ocasionalmente cometidos. O estúdio engatou logo dois dos piores longas de seu catálogo com “Homem de Ferro 3” e “Thor: O Mundo Sombrio”, mas estava tudo bem, porque o universo já estava estabelecido, e se o público não gostasse daqueles, outros viriam. No caso de “Homem de Ferro 3”, ainda há muitos que o defendem, seja pelo estilo claro do diretor Shane Black, ou pela pseudodiscussão sobre estresse pós-traumático, ou até mesmo pela brincadeira do falso Mandarim. Mas o que de fato justifica o sucesso da obra é Tony Stark. O personagem é bom, queremos mais dele. O filme não é tão bom assim? Podemos aguentar, pois em breve veremos ele novamente.
No caso de “Thor: Mundo Sombrio”, é difícil encontrar alguém que goste, e na verdade ele chega mais próximo de ser uma unanimidade sobre ser o pior filme do MCU. Mas o personagem que ganhou o público em “Thor” foi Loki, e ele estava de volta aqui, sendo basicamente a única coisa que “salva” a obra. O deus da Trapaça de Tom Hiddleston foi sempre tão adorado que depois de falsas mortes e até um verdadeira, ele ainda vive em uma série própria, que terá uma segunda temporada. Com o Thor, a Marvel não havia tido tanto sucesso assim, mas veio então o salvador do personagem com Taika Waititi. Seu “Thor: Ragnarok” repagina o deus do Trovão de Chris Hemsworth e finalmente o coloca como alguém relevante dentro de sua própria história.
O desconhecido grupo dos Guardiões da Galáxia se tornou sucesso imediato, “Homem-Formiga” conseguiu sobreviver ao abandono de Edgar Wright por conta do carisma de Paul Rudd, e “Vingadores: Era de Ultron” ainda consegue ser amado pelos fãs não pela história que prometia algo sombrio e entregou uma inteligência artificial boba, mas pelos personagens. A cena mais lembrada do filme segue sendo a cena do jantar, que serviria não só como um distante foreshadowing do quanto Steve Rogers é digno, mas que junta todos aqueles que já amávamos, interagindo como uma família.
Até “Pantera Negra”, que pode ser colocado alto no ranking na Marvel não só pelos personagens mas também pela história, ainda tem seus erros, e um terceiro ato que deixa a desejar. Tais defeitos costumam ser esquecidos logo que lembramos da cena de despedida de Killmonger, e da mensagem que o filme deixa em seu final. Agora, depois da morte de Chadwick Boseman, é impossível olhar para “Pantera Negra” com os mesmos olhos, porque a obra acaba sendo um legado do ator.
Mas até mesmo se olharmos para os celebrados “Vingadores: Guerra Infinita” e “Vingadores: Ultimato”, eles triunfam menos por suas histórias, e mais pela conexão emocional que o público possui com os personagens. Muitos dizem preferir “Guerra Infinita” a “Ultimato”, ignorando ou simplesmente não se importando com o fato de seus vários núcleos separados deixarem a história fragmentada. Ora, mas isso de fato não importa quando o estalo de dedos de Thanos leva embora todos aqueles que amamos, nos deixando desolados no cinema. Muitos preferem “Ultimato” pela baita recompensa que ele oferece, dando a chamada “passada de pano” para suas conveniências de roteiro. Nada mais justo, afinal o filme é uma celebração de 11 anos de MCU, podemos apenas ser felizes com o que gostamos.
Certo, mas o que isso tem a ver com “Shang-Chi”? A produção está sendo amplamente elogiada, já entrando no topo do ranking de vários fãs, sucesso de bilheteria, sendo tão admirada que fez da obra a mais aprovada pelo público no gênero de heróis no Rotten Tomatoes.
E isso tudo é ótimo. Mas “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” é um filme imperfeito. Como ele pode ser tão amado?
Quando o desenvolvimento de seu herói está mais na mente do público do que no próprio filme
Quebrando um pouco a objetividade, tenho muita dificuldade em me expressar falando, o que acaba sendo irônico (e irritante para muitos) minhas participações nos vídeos e podcasts do Rapadura. É difícil expressar o quanto amei “Shang-Chi” ao mesmo tempo que tenho plena consciência de seus vários defeitos. Este texto é uma tentativa de conciliar ambos os lados, e oferecer uma visão que pode ser interessante para quem está lendo. A quem já chegou até aqui, suponho que ir mais adiante até o fim não será um problema, um benefício que as letras oferecem, enquanto a voz afasta. Sim, caro leitor que amou “Shang-Chi”, o filme tem defeitos. Sim, caro leitor que não gostou de “Shang-Chi”, ele tem qualidades. Que doido pensar que o mundo não é feito de extremos, não é mesmo?
Talvez não o pior, mas certamente o mais chamativo defeito é o fato de que a produção deixa de lado suas belíssimas lutas marciais em cenários criativos, para dar lugar a criaturas fantásticas de CG se enfrentando debaixo de um céu cinza. Sim, a história do herói sempre contou com elementos fantasiosos, assim como os próprios Dez Anéis o são, mas o longa faz uma curva drástica de onde estava para que o vilão final seja um devorador de almas que nada tinha a ver com o que estava acontecendo antes.
A curva é feita, inclusive, através do retorno de Trevor Slattery, o falso Mandarim de “Homem de Ferro 3″, interpretado por Ben Kingsley. Por algum motivo, viu-se necessário trazer de volta um personagem que nunca acrescentou nada, uma piada que continua sendo uma piada, e dessa vez, bastante inconveniente. Através de Wenwu, o verdadeiro Mandarim (que na verdade não se intitula de tal forma), um público que não tinha ciência do curta “All Hail the King” — o retcon que informou a existência do real líder da organização criminosa Os Dez Anéis — pôde entender o que aconteceu. O hipnotizante Tony Leung explica para Katy, e para nós, que um idiota qualquer havia assumido sua identidade, e isso já era o suficiente para esclarecer qualquer confusão.
Mas eis que então, lá está Trevor Slattery, que não apenas aparece, como é o único que consegue falar com uma criatura mágica sem rosto, a chave para que os protagonistas possam entrar em Ta Lo antes de Wenwu. Uma decisão mal trabalhada que obriga o público a aceitar a conveniência para poder tentar aproveitar o que vem depois. É a partir daí que o filme entra em seu caminho mais problemático, mas menos pelas criaturas de CG e mais pela mensagem que ele está tentando passar através de seu herói.
Shang-Chi é filho de Wenwu, o poderoso e milenar portador dos Dez Anéis, e Li, guardiã da dimensão mágica de Ta Lo. A cena inicial apresenta logo de cara que Wenwu poderia usar o poder que encontrou para o bem… mas preferiu buscar poder. Ele criou um império para si, e continuaria sua busca por mais se não tivesse encontrado – e se apaixonado – por Li. Ela guardava a entrada de seu reino contra intrusos dispostos a invadi-lo atrás do que não poderiam controlar, mas deixou seu posto, e seu lar, pelo homem por quem se apaixonou. Shang-Chi é fruto dos dois, e na metáfora que o filme passa, Li representa a luz, enquanto Wenwu representa a escuridão dentro do protagonista.
É possível entender tal ideia, mas a história falha em mostrar isso. Depois de passar por um árduo treinamento por sete anos para se tornar um assassino, Shang-Chi foge do domínio do pai aos 14 anos, depois de matar o responsável pela morte de sua mãe. Estes detalhes são apresentados pouco a pouco ao público, e embora funcionem dentro da narrativa, não entram em harmonia com o Shang-Chi que vemos nos dias atuais. Encontramos ele como Shaun, vivendo uma boa vida em San Francisco junto a sua amiga Katy. Ambos não têm planos concretos para o futuro, mas quem tem afinal?! Eles são a norma. Quando descobrimos a real identidade de Shaun, o filme tenta passar a ideia de que ele está em conflito sobre quem verdadeiramente é, e talvez por isso não consiga levar sua vida com propósito.
Podemos entender isso através dos flashbacks, mas não conseguimos ver o mesmo no Shang-Chi que decide lutar contra o pai ao final do filme. A trama vai levando-o até ali, mas se não estivermos dispostos a aceitar que o único jeito de Shang-Chi derrotar Wenwu é aceitando a luz e a escuridão dentro de si, não entendemos por que Wenwu é derrotado. Antes do embate, o personagem de Tony Leung debocha: “você acha que vai me derrotar sozinho?”, e na verdade essa é uma pergunta que o próprio público pode fazer. Em que momento foi estabelecido que Shang-Chi teria a capacidade de derrotar o poderoso e milenar portador dos Dez Anéis?
Na excelente primeira metade do longa, vemos como os estilos de luta de Wenwu e Li são diferentes, ele optando pela brutalidade, e ela pela delicadeza, conseguindo-o derrotar por usar seus golpes contra ele (e pelo fato de que ambos apaixonados talvez não estivessem lutando de verdade, detalhes). Conhecemos também o estilo de Shang-Chi, que treinado aos modos do pai, é mais ágil e incorpora movimentos mais modernos. Temos chance de vê-lo lutando contra capangas aleatórios e o gigante Razor Fist na divertida cena do ônibus, e vemos ainda mais sua agilidade e adaptabilidade na cena do prédio. Chegamos a ver até uma eletrizante luta entre ele e seu antigo mestre, Death Dealer, em uma cena que se beneficiaria de ser mais longa. Mas nunca vemos as habilidades de Shang-Chi comparadas às de Wenwu antes do fim.
Muito por conta da excelente atuação de Tony Leung, Wenwu é um personagem carismático e amedrontador. O prólogo mostra suas conquistas, e o flashback de quando ele vai atrás de quem matou sua mulher mostra sua impiedade. Não o vemos lutando tanto quanto vemos Shang-Chi, mas através de tudo isso entendemos que ele detém poder, e com os Dez Anéis, ninguém seria capaz de derrotá-lo. A não ser que ele não seja o vilão de verdade, tenha seu coração enfraquecido pela perspectiva de ver a mulher novamente, e que consegue de fato vê-la, mas dessa vez nos olhos de seu filho.
O filme desiste de Wenwu como vilão quando é revelado a Shang-Chi e sua irmã Xialing que a razão de trazê-los de volta é para recuperar a mãe deles e curar a destruída família. Tal plano não é uma enganação do personagem para convencê-los a ir a Ta Lo atrás de mais poder, e sim é genuinamente um desejo de seu coração, algo mostrado ao público através da cena em que Li supostamente fala com ele. Dessa forma, é mais improvável convencer o público de que Wenwu deve ser parado. Sim, ele pretende salvar a amada ao destruir todo um povo, mas ao invés de cometer um ato tão vil em busca de mais poder, como ele sempre fez, na verdade o personagem está desesperado atrás da única pessoa que foi capaz de mudá-lo.
Paralelo a isso, quando Shang-Chi chega a Ta Lo, sua tia Nan, interpretada por Michelle Yeoh e seus sábios olhos, passa a ele a mensagem da luz e escuridão. Uma mensagem que não vem dele mesmo, mas que ela coloca em sua cabeça como a verdade do que está acontecendo. O herói então precisa encontrar a mãe dentro de si, pois apenas o pai estava presente ali. É confuso, pois o protagonista passou dez anos fugindo do passado, e de certa forma se tornou uma nova pessoa. Mas é como se voltar a sua antiga casa, onde passou sete anos sendo treinado para ser uma máquina de matar, lembrou-lhe de que ele possui sim um ódio no coração e que, assim, precisava lembrar do amor de sua mãe.
No entanto, o tempo restante no filme não é o suficiente para que seja crível a eventual vitória de Shang-Chi contra Wenwu. É até possível acreditar que o breve treinamento com Nan tenha o preparado, afinal sua mãe costumava ensiná-lo seus movimentos quando pequeno, e os flashbacks colocados ao longo da narrativa ajudam nesse sentido. Mas essa raiva que Shang-Chi supostamente tem contra seu pai é pouco elaborada, e não cai tão bem em um protagonista que já nos conquistou como alguém divertido e até feliz. E então, Wenwu só tem de ser parado no fim porque está prestes a abrir um portal que libertará uma criatura devoradora de almas. Não porque ele é um chefe de uma organização criminosa global que precisa ser parado pela sua busca incessante pelo poder. Ele apenas quer sua amada de volta, e em seu fim, ao reconhecer Li em Shang-Chi, ele cede os Anéis a seu filho, em uma espécie de redenção não falada.
Shang-Chi então se torna portador dos Anéis como um resultado do equilíbrio entre luz e escuridão, em uma mensagem que depende muito mais da nossa aceitação do que de como foi escrita. Mas quer saber? Não tem problema. O personagem é bom, queremos mais dele, podemos aceitar os defeitos, pois em breve o veremos novamente.
Como amar algo imperfeito?
“Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” me conquistou sem muito esforço, apenas por ter muito coração. Simu Liu faz um herói tão cordial e relacionável, que é muito fácil estar do seu lado. Awkwafina está maravilhosa como sempre, e a engraçada e compreensiva Katy nos faz amar ainda mais Shang-Chi, pois através dela conseguimos entender que ele de fato é um herói. Mesmo que pouco abordada nesse texto, a Xialing de Meng’er Zhang me conquistou com menos de um minuto de tela. A relação entre irmãos é um dos pontos altos. Vê-los lutando um contra o outro e depois lado a lado, unidos pelo trauma e também pelo amor, deixou o filme ainda mais especial para mim, que tendo um irmão como a pessoa mais importante da minha vida, nunca consigo deixar de me emocionar ao ver uma relação assim em tela. A Li de Fala Chen consegue realmente mostrar como alguém como Wenwu largaria tudo por ela. E Tony Leung é facilmente o trunfo, sendo impossível pensar em como a obra seria sem sua hipnotizante atuação.
Vinte e cinco filmes depois, hoje em dia já se fala como a Marvel costuma estragar suas obras com suas criaturas de CG, fotografia desinteressante, ou vilões mal desenvolvidos. E de fato o estúdio cai em todas essas armadilhas no terceiro ato de “Shang-Chi”. Mas é impossível ignorar tudo o que o longa tem de bom. Sim, temos easter eggs do MCU, e as participações da Capitã Marvel e Bruce Banner (além do bem encaixado Wong), mas ao lembrarmos da Fase 1, conseguimos reconhecer as pistas para o futuro, sem que a história de um novo herói seja prejudicada.
Shang-Chi pode não ter tido um triunfal primeiro filme como aconteceu com o padrinho do MCU, mas, assim como vários outros que vieram depois, o herói tem o que é preciso para fazê-lo durar por muitas outras produções, sejam elas boas, medianas, ruins ou excelentes: coração.
O post Shang-Chi: Como um filme imperfeito ainda consegue conquistar o coração do público? apareceu primeiro em Cinema com Rapadura.
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