O divertido da vida é quando a arte a imita. Neste “O Bom Doutor”, que claramente adota uma dinâmica parecida com a de “Intocáveis”, fenômeno mundial francês, existe uma grande diferença que torna esta obra tão interessante quanto, apesar da semelhança: aqui, há um médico desgostoso com a vida após uma tragédia pessoal e um entregador de aplicativo, que se encontram ao acaso e formam uma parceria de grande organicidade. O outro filme apresentava a clássica contradição do luxo versus a classe operária, de origem imigrante. Com isso, para embarcar neste filme, deixe de lado outras comparações, porque elas podem atrapalhar a sua experiência.
Não que os filmes não se equivalham, mas o início deste argumento precisa indicar o quanto ambos merecem ser vivenciados, cada qual com suas qualidades. Por isso, aqui existe uma narrativa temporal mais rápida, pois tudo se passa na véspera de Natal, quando o médico, Serge (Michel Blanc) está cumprindo sua rotina como o único profissional que atende pelo sistema de saúde que vai até a casa das pessoas. Porém, sua personalidade nada afável o faz beber mais do que deveria (o que, em pleno atendimento, deveria ser zero), e ter como única companhia a voz de Suzy (Chantal Lauby), responsável por passar a ele os endereços e, de vez em quando, repreendê-lo por um atendimento mal feito.
Porém, quando Serge recebe a ligação de Rose (Solène Rigot), que mais tarde descobre-se ser a namorada de seu filho, morto em um acidente de esqui há pouco tempo, ele esbarra com o entregador do Uber Eats, Malek (Hakim Jemili), atrapalhado, bem-humorado e ágil na medida certa. Então, o que deveria ser um encontro ao acaso acaba se tornando a companhia de Serge naquela noite, que se estende por certo tempo justamente porque, ao receber de forma errônea uma injeção na nádega, ele perde o movimento das pernas, e é Malek quem o substitui como o médico plantonista.
Com a dinâmica estabelecida, este “O Bom Doutor” não tem uma história original, pois este é o seu ponto fraco, porém, o roteiro de Jim Birmant e Tristan Séguéla, este também diretor, é hábil ao contornar todas as limitações através do que o filme traz como o melhor contraponto: suas relações. E o talento de Michel Blanc e Hakim Jemili é comovente e hilário ao mesmo tempo, criando a dualidade necessária para fazer a relação deles funcionar. Pois, enquanto Serge está sempre carrancudo, o ator consegue trazer emoção ao olhar de seu protagonista, e o carisma magnético de Jemili balanceia com exatidão essa equação, que pode parecer simples, mas não funcionaria tão bem se os atores não estivessem alinhados e afinados.
Além disso, Séguéla não poupa o espectador de situações-limite, o que faz com que a dinâmica do longa se estabeleça como algo recorrente, e o que poderia ser apenas uma véspera de Natal se transforma em um conluio para derrubar a carranca do médico. E mais: aqui também existe o contraste social, mas isso não impede o roteiro de dar poder a Jemili, ao invés de transformá-lo em uma vítima do sistema. É claro que a sua realidade é única, e o positivismo em excesso poderia incomodar, mas, mais uma vez, há o balanço do roteiro para fazer tudo funcionar.
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Por sua vez, a fotografia de Frédéric Noirhomme é outro ponto eficaz que poderia cair no lugar-comum, mas que evita isso justamente pelas escolhas dos ângulos, muitas vezes fugindo do convencional, como o momento em que Malek precisa lidar com um antigo cliente hostil, ou quando Serge entra propositalmente na contramão – ou nem tão propositalmente assim.
Com tudo isso, este “O Bom Doutor” ainda ganha pontos por tornar o rancor de Serge algo justificável, incluindo a sua forma de lidar com os pacientes. Prestes a desistir de quaisquer ângulos de otimismo, o médico ainda precisa lidar com a morte de seu filho, e o seu relacionamento paternal com Rose é prova disso. Com a entrada de Malek em sua vida, uma nova relação é criada, e a química entre eles é justamente o que ambos precisavam naquele momento – e Malek literalmente carrega Serge em suas costas. Assim, o filme é uma agridoce experiência cinematográfica, recomendável para os mais cínicos de plantão, mas também para os que buscam o riso em meio à trivialidade trágica da vida.
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