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Nova Orleans sofreu demais quando o furacão Katrina surgiu e devastou boa parte da cidade, em 2005. Mas, ainda que este seja um capítulo tenebroso de sua história, não é o único, e nem o pior, pois ali está enraizada a cultura de um povo escravizado por séculos, e que hoje consegue lutar para destruir o sistema supremacista que continua tratando a cultura africana como algo aquém, inferior. Nada melhor, então, do que o cinema para pincelar sobre o assunto através do gênero terror, o que é feito neste divertido “Negra como a Noite”, do Prime Video.

Shawna (Asjha Cooper) é a protagonista inquestionável: toda a história é narrada por ela, que decide levar ao espectador como o seu último verão foi diferente, e não apenas porque seu corpo passou por transformações típicas da adolescência, mas porque ela precisou lutar contra vampiros. Arredia ao sol, Shawna conta com a constante companhia de seu melhor amigo, Pedro (Fabrizio Guido), e eles formam uma dupla principal que, por si só, é representativa e inclui, em um gênero dominado por brancos, sobretudo nos filmes populares dos anos 1980 e 1990, outro olhar ao terror.

Nova Orleans passa por diversas dificuldades econômicas desde que o Katrina a destruiu, e, sobretudo nos bairros nos quais a comunidade negra e latina são fortes, parece não haver interesse do poder político em revitalizar absolutamente nada. Ali, em um típico condomínio que sofre com a degradação do tempo, no qual estão alojadas pessoas de baixa renda, muitos beirando a miséria, está o pano de fundo desta história. Shawna sempre aparece por lá para visitar sua mãe, que abandonou a família em decorrência do uso e do vício de drogas, e a garota parece compreender que aquela é a realidade e ponto final.

Aliás, Shawna parece não se incomodar com nada além de sua própria vida, e isso não faz dela o tipo de protagonista fraca, ou egoísta, e sim introspectiva porque carrega problemas demais para sua idade. Desta forma, ela e Pedro parecem lidar com os problemas econômicos de suas vidas da forma mais leve possível, até o dia em que Shawna troca as primeiras palavras com Chris (Mason Beauchamp), por quem é apaixonada. O problema é que, poucos minutos depois, ela é atacada por um vampiro.

Em “Negra como a Noite”, a diretora Maritte Lee Go brinca com o gênero terror o tempo inteiro, jogando os famosos jump scares no espectador. Porém, ela é hábil ao não criar apenas um exemplar do gênero ao melhor estilo “adolescente luta para dar a volta por cima e vencer os bandidos”, pois o tempo inteiro faz questão de pincelar a história política e a supremacia branca na raiz da cultura norte-americana, e faz isso com sabedoria ao compor, por exemplo, um elenco formado quase que completamente pelas chamadas “minorias”, ou melhor, por pessoas que não encontrariam protagonismo em outras histórias. Aqui, então, a única garota branca é a coadjuvante que precisa aprender sua lição, mesmo que seu comportamento não seja agressivo, mas justamente porque há, nela, uma prepotência velada.

Por sua vez, Shawna precisa lutar contra os vampiros que estão crescendo naquela comunidade, a partir do momento em que o líder deles, interpretado de forma divertidamente assustadora por Keith David, é nada menos que um escravo transformado em monstro, e que passou as últimas décadas mordendo moradores de rua, as pessoas esquecidas pelo sistema, em um exército para acabar com a supremacia branca – criando um contraponto interessante por formar outro tipo de supremacia.

Assim, a protagonista e seus amigos precisam lidar com os vampiros da forma clássica: estacas de madeira, alho, prata. Toda a literatura está ali, mas o que está ali não está na literatura, e este é o grande acerto da diretora, que contou com o roteiro bem alinhado de Sherman Payne. Porém, ainda que haja autenticidade, e que a narração de Shawna, presente em todo o filme, funcione bem, é bem provável que o espectador sinta falta de algo, e isso fica claro ao término do longa. Ele é bem escrito, traz a cultura do vampiro de forma equilibrada, uma protagonista bacana, mas, não vai além justamente quando tem a oportunidade em mãos.

Ou seja, o filme apenas pincela as possibilidades que sugere, e poderia ter ido muito além com pelo menos vinte e cinco minutos a mais, discutindo aquela realidade e tornando o pano de fundo de Nova Orleans em algo que refletisse de forma mais pungente o que a escravidão causou na sociedade norte-americana, e como ela ainda reverbera em diversas partes do país, sobretudo em uma cidade cuja cultura é mundialmente famosa, como essa. Com isso, o filme se torna um bom primeiro capítulo de algo que não é continuado, mas que deixa o gosto de “quero mais”.

O post Crítica | Negra como a Noite (Prime Video, 2021): contra o racismo na ponta do dente apareceu primeiro em Cinema com Rapadura.

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