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Ela caminha por alguns corredores, que parecem os de uma escola, cheio de jovens passando de um lado a outro. Para em uma mesa, com um pôster enorme de seu rosto atrás, convidando a todos para fazerem doações para a sua causa. Rapidamente o espectador associa a situação à realidade daquela jovem: ela tem câncer, e a ausência de cabelos torna sua luta em estágio nada inicial. Porém, a cena corta para um banheiro, à meia-luz, enquanto a mesma jovem raspa a sua cabeça. A dualidade desta protagonista, acredite, é o cerne deste “Mentira Nada Inocente”.

Katie Arneson (Kacey Rohl) é uma jovem brilhante, cujas excentricidades fizeram-na uma grande mentirosa. Todos os dias, ela convence o mundo de que está com câncer, para ter a atenção de todos e, em consequência, conseguir dinheiro através de doações para seu suposto tratamento. A única pessoa que desconfia de suas atitudes é seu pai, Doug (Martin Donovan), cuja maior revolta é a filha ter feito algo semelhante quando ainda era estudante, e ter sido desmascarada marca a sua sociopatia. Porém, ainda que este seja um filme sobre uma vilã da sociedade, é esta a verdadeira analisada desta história.

Isso porque todas as atitudes de Katie se refletem em quem está à sua volta. Da namorada completamente empática à sua causa à coordenadora de um projeto que pode lhe render uma bolsa de estudos, tudo é encaixado como diversas peças de um quebra-cabeças quase mórbido, no qual as pessoas precisam sentir o peso emocional de conviver com alguém enfermo, e a presença de Katie como a “jovem com futuro brilhante à frente” é idealizada por todos ao redor, o que faz com que tire proveito da situação de forma objetiva, quase que acreditando em sua própria mentira.

Assim, este longa acompanha uma protagonista nada convencional, pois ela é desnudada de todas as más intenções a partir do momento em que a direção de Yonah Lewis e Calvin Thomas, que também assinam o roteiro, poupam o espectador de clichês melodramáticos. A intenção é formar um arco em cima de quem de fato engana o mundo através de uma mentira horrorosa como a suposição de um câncer, e a interpretação da jovem para ter a tal doença é primorosa, pois ela se poupa até mesmo de comer, para que os efeitos da falsa quimioterapia surtam de forma convincente. Além disso, Katie consegue enganar até mesmo sua namorada, Jennifer (Amber Anderson), permitindo com que esta esteja presente apenas o tempo necessário, apenas para satisfazer suas necessidades físicas e emocionais.

Enquanto isso, a mentira é desconstruída. O pai de Katie vai a público desmascará-la, e isso faz com que a jovem crie um plano ainda mais forte, mas a desconfiança já foi gerada, e a mentira pode mudar completamente o rumo de sua vida. Assim, o filme conta com três atos muito bem definidos, e o cliffhanger dos primeiros dez minutos é forte o suficiente para intrigar o espectador, que poderá se segurar na cadeira para manter a frustração controlada. Sim, esta é uma experiência completamente atordoante, e a sua eficácia é seu maior mérito.

Pois, enquanto a protagonista completamente humanizada é colocada à prova, e isso existe por conta da interpretação magnética de Kacey Rohl, o restante daquele micro universo se torna cada vez mais hostil, mas apenas porque se sentiu enganado, e não de fato porque queria ajudar a jovem com câncer. Com isso, os diretores estabelecem um parâmetro discreto, mas presente, que traz as sutilezas de uma sociedade condescendente. Existe dó, mas não empatia; existe afago, mas ele é apenas decorativo. Todos estão preocupados, mas se importam apenas em doar o dinheiro e esquecer-se daquele “problema” (com ênfase enorme nas aspas) chamado Katie Arneson. 

Desta forma, aqui está uma protagonista que faz jus ao título do filme, e torna este “Mentira Nada Inocente” parte de um problema: existe, sim, inverdade horrorosa, mas ela é parte do sistema, e não o inimigo deste. E o que o filme faz, com a câmera sempre próxima ao rosto daquela personagem, tão incômoda de ser vista, é cutucar uma das feridas mais pragmáticas dos tempos modernos: a condescendência virtual – e o linchamento sempre à disposição.

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Crítica | Mentira Nada Inocente (2019): a dor dos infortúnios

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