Muito mais: Brasileiro, Cinema, Crítica, Terror, Filmes, Série, Crítica | A Chorona (2019), Drama, Opinião

Dentro da linguagem audiovisual, o gênero serve para encaixar uma obra, entre outras coisas, em alguns conceitos e até mesmo parâmetros para lidar com a história e determinar seu rumo. Porém, em filmes como este “A Chorona”, o gênero terror é apenas um pano de fundo para contar algo que vai muito além dos sustos e do sobrenatural. As regras estão lá, mas o uso da linguagem o faz de forma mais contida, como visto em “A Bruxa” ou “O Babadook”. As simbologias se sobrepõem e criam, de forma natural, uma conexão entre o terror e a temática pretendida.

Por isso, quando este filme começar, logo o espectador perceberá que não se trata de um terror comum, até porque seu título é semelhante a outras obras recentes, e é importante não confundir. Esta é a história de uma sociedade dividida entre os que se denominam ricos e, para eles, superiores que não se importam com nada financeiramente abaixo deles, e o restante do país, que luta para manter sua cultura, raízes e direitos dentro da lei. Há, também, um jogo parecido com o de castas, e a forma com a qual povos originários são tratados é o grande cerne da questão. E não, o filme não é brasileiro, apesar da semelhança de sua realidade, e este é um dos principais pontos fortes desta obra: sua universalidade temática.

“A Chorona” é um representante do cinema da Guatemala, e seu diretor, Jayro Bustamante, que também assina o roteiro ao lado de Lisandro Sanchez, é o responsável por construir uma obra que brilha justamente porque não subvaloriza a inteligência de seu espectador, pois, desde o começo o filme conta a história de um general aposentado que esteve envolvido em uma chacina em conflitos do país, e que, trinta anos depois, com o peso da idade em seus ombros, e com as crise do Alzheimer, passa a ser confrontado de formas nada convencionais.

Porém, o tal general, Enrique (Julio Diaz) passa por uma série de problemas neurais, e sua estadia exilado na mansão que mantém, ao lado da esposa Carmen (Margarita Kénefic) e, agora, de sua filha Natalia (Sabrina De La Hoz) é comprometida porque seus atos do passado estão em julgamento, e a população do país inteiro está contra ele, manifestando-se de forma cada vez mais violenta, ameaçando a segurança de sua casa enquanto é levado de um lugar a outro escoltado pela segurança que pode pagar. Com o caso na boca da imprensa, o general finge sofrimento enquanto ninguém mais parece cair em seu discurso.

Desta forma, ao estabelecer uma dinâmica de constante urgência, com os manifestantes sempre prestes a invadir a mansão de Enrique, o longa leva o espectador à sensação de constante incômodo, e o terror noturno causado pelo sonambulismo, que deixa o general extremamente violento, ou livre de suas amarras sociais, fez com que todos os funcionários de sua mansão fossem embora, à exceção da mais antiga deles, Valeriana (María Telón), que não consegue dar conta de tudo sozinha, e que recebe a ajuda de uma jovem aparentemente vinda de seu povoado: Alma (María Mercedes Coroy).

Com a urgência ao estilo de “Nova Ordem”, e com a atmosfera de classes lembrando bastante “Que Horas Ela Volta?”, o longa de Bustamante apresenta o segundo ato de forma tão orgânica que o envolvimento de quem o assiste é natural. Desta forma, as justificativas para Enrique ouvir o constante choro feminino à noite, em forma de lamento, é um dos principais questionamentos que o roteiro segura até seu terço final, e isso é apresentado através da ampliação do incômodo, seja pelos manifestantes que ameaçam a segurança daquela casta, seja pela nova ajudante, Alma, tão misteriosa para a família quanto para o espectador.

Assim, o filme se desenvolve acerca do que Enrique fez em seu passado, e como ele pode se tornar relevante agora, tanto tempo depois, para forçá-lo a pagar sua dívida pelos brutais assassinatos que cometeu. Sem culpa alguma em seu ego, mas com o fingimento à flor da pele para parecer mais enfermo do que está, o general passa a perseguir a jovem ajudante, e isso muda completamente a relação daquela família com a classe operária, que aqui representa a ruptura ideológica entre os brancos descendentes de europeus e os indígenas e originários que se mantiveram forçadamente às margens da sociedade. 

Desta forma, o roteiro é hábil ao manter o ritmo cálido, porém, contínuo. Com isso, o espectador perceberá que o sobrenatural faz parte, sim, daquela história, mas que ele tem um significado muito mais triste do que o esperado, justamente porque a política consegue ultrapassar quaisquer questões de raiz, cultura e identidade. Em uma terra dominada pelo branco, historicamente o longa representa todos os países da América Latina, e o terror do sangue derramado para embranquecer a identidade do país é o que torna esta obra contundente, necessária e universal.

Com isso, Bustamante é hábil ao evitar criar laços entre Alma e sua origem, e entre esta personagem e o espectador, para que o gênero terror continuasse surtindo efeito, diminuindo nuances dramáticas e evidenciando o apelo de um povo que sofreu calado pelos meios judiciais, mas que encontra outras formas de fazer justiça contra os saqueadores daquele país. E o mais assustador é perceber como essa realidade tem se tornado atemporal e universal, o que é uma condição tão deprimente quanto o mais duro drama, e tão aterradora quanto o gênero terror consegue ser.

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